quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Efeméride

Domingo, 8 de Fevereiro. Fazia 50 anos que entrei para a Casa do Gaiato. Era uma efeméride que merecia ser discretamente festejada mas vivamente saboreada.
Estava uma manhã chuvosa e enevoada, contrastando com a luminosidade da minha alma, quando acompanhado de minha mulher e de nossa filha, família constituída há mais de 30 anos, subi emocionado a avenida, ainda deserta, da Casa do Gaiato, em Paço de Sousa. Com o coração inundado de gratidão, rumei à capela e recolhi-me por breves momentos junto à campa de Pai Américo. O simbolismo de lhe agradecer pessoalmente o cidadão que sou, continua a ser sempre um dever moral. Mas nesse dia chuvoso de Fevereiro tinha outro sabor. O tornar-me gaiato mudou decisivamente o rumo da minha vida. Uma drástica mudança, num rapaz traquina, franzino e de olhar vivo, que deixou o casebre em que vivia, na companhia de um velho casal de mendigos, numa “ilha” miserável das ruas do Porto. Ganhava o direito a sonhar a certeza de uma vida saudável, cortando o cordão umbilical com a miséria física e moral. E ganhei uma família. Uma família diferente de todas as outras, é verdade, mas uma família onde o carinho e o afecto são uma realidade. Uma família constituída por rapazes abandonados ou socialmente definidos como “os mais repelentes”, como dizia Pai Américo, a quem o futuro não oferecia nada de bom. Uma família tão diferente, que ainda hoje confunde políticos e juristas que fazem e aplicam leis tontas, desconhecendo que o cerne da família é o amor e o afecto, sendo os laços de sangue um suporte demasiado frágil e muitas vezes fortuito para ser tornado lei. Ainda hoje, é com alguns gaiatos de então, a que trato por “mano”, que tenho um convívio frequente e solidário e não com os irmãos de sangue (ainda que filhos da mesma mãe e cada um filho de seu pai) que me são desconhecidos emocionalmente.
Um passeio vagaroso pela aldeia, com a comunidade ainda a despertar, sob a chuva miudinha que se associava à minha alegria, qual gotas de champanhe borbulhando, a rememorar os afectos e os factos mais relevantes de uma vida de 15 anos na Casa do Gaiato.
Hora da missa. Os rapazes vão chegando ao cruzeiro frente à capela. Abraços e troca de memórias com outros gaiatos do meu tempo, que envelheceram como continuadores da Obra, confirmando o desejo do fundador, “Obra de Rapazes, para Rapazes, pelos Rapazes”.
A capela cheia. Mais que uma liturgia, a missa sempre foi um acto comunitário, uma reunião de família, onde todos devíamos estar presentes. Um acto a que, como gaiato, assisti despojado de constrangimentos. Apesar de agnóstico, aceitei o generoso convite para fazer a primeira leitura da missa de domingo. Um texto lindo e intemporal do livro de Job, muito a propósito, exigindo uma reflexão sobre o sentido da vida.
Terminada a missa, um “até depois” e o regresso a Lisboa, com a alma mais limpa e o coração com um bater mais leve. E com a certeza que continuarei sempre gaiato e que defenderei com toda a lucidez e energia a Obra de Pai Américo, a minha família, dos seus detractores por melhores que sejam as suas ignotas intenções.